Refugiados Eritreus: reféns do mito da Eritreia Mártir após a independência

De entre os 1701 refugiados que Portugal irá receber entre 2015 e 2017 contam-se Sírios e Eritreus.

A Eritreia na sequência de um referendo tornou-se formalmente independente a 24 de maio de 1993.

A antiga colónia italiana (1890-1941), com a derrota pelos Aliados das forças  de Mussolini e o consequente desmembramento do antigo império italiano da África Oriental,  foi primeiramente administrada pelas forças da Grã-Bretanha.  Após a decisão das Nações Unidas foi integrada numa Federação com a Etiópia em 1952. Este período durou apenas dez anos e a Etiópia revogou a Federação e incorporou a Eritreia como 14ª Província. Foi esta decisão que catalizou o recurso à força e deu início à insurreição separatista na Eritreia. A insurreição pelo reconhecimento ao direito à auto-determinação da Eritreia durou 30 anos com base no mesmo princípio consagrado pela então Organização da Unidade Africana como constituindo o fundamento da criação de Estados independentes: o legado colonial consubstanciado no respeito pelas fronteiras herdadas no momento da independência (uti possidetis). Finalmente em 1991 com os ventos propícios do pós-Guerra Fria, as forças conjuntas da Frente de Libertação do Povo Eritreu (sigla EPLF em inglês) e da Frente Revolucionária Democrática do Povo Etíope ( que incluía o principal aliado da causa separatista da Eritreia na Etiópia –  a Frente de Libertação do Povo do Tigray – TPLF) derrotaram as Forças Armadas  Etíopes afetas ao regime Etíope de apoio da antiga União Soviética : o Derg.

Mas o que aconteceu na Eritreia após a independência que possa explicar que esta se  encontre entre os Países que mais originam requerentes a asilo político e refugiados nos últimos anos? Como explicar que a principal estratégia local de um futuro alternativo passe pela opção de deixar clandestinamente o País? Qual o destino dos 24000 Eritreus que em média por ano se vêm forçados a abandonar o seu País?

Este reduzido grupo que está destinado a Portugal  faz parte de um fluxo migratório que se tem vindo a acentuar nos últimos 15 anos. Mais recentemente a afluência tem diminuído pese embora a não alteração das condições internas.

 O que conduziu os Eritreus à fuga do recém Estado? Esta estratégia local é tão mais intrigante e em contraste com as estratégias de tantos quanto lutaram arduamente durante 30 anos. Na guerra pela independência pelo menos  65000 militares sacrificaram  as suas vidas e para além destes entre 150000 a 250000 civis perderam a vida.

Eritrean Independence Struggle

Já após a independência, na guerra fronteiriça com a Etiópia entre 1998 e 2000 estima-se que as baixas dos dois lados tenham sido 100.000. A situação atual é de nem paz, nem guerra. É a partir deste breve enquadramento que podemos entender como estes refugiados eritreus se viram obrigados a deixar o seu País e de que contexto fogem aqueles que vão em breve ser recebidos pela sociedade portuguesa.

Na Eritreia, a Proclamação do Serviço Nacional data de 1991 (11/1991) e em maio de 1993 o Presidente Isaías Afewerki anunciava que os antigos combatentes do EPLF deveriam continuar a prestar serviço voluntário. Tal anúncio gerou  protestos  que foram reprimidos de imediato de forma muscular.   A Proclamação de 1995 (82/1995)  instituiu um período de 18 meses de serviço militar obrigatório para todos os cidadãos entre os 18 e os 50 anos, compreendendo 6 meses de treino militar e político no campo de treino em Sawa e o restante período de 12 meses destinava-se a serviço no contexto dos esforços nacionais de reconstrução do recém Estado independente . Até à eclosão da guerra com a Etiópia em 1998 o período de 18 meses foi respeitado.

A partir do fim da guerra com o cessar fogo de junho e o Acordo de Paz de Argel de dezembro de 2000 a Eritreia e a Etiópia ficaram com o desafio imenso da desmobilização.No entanto, desde 2000 a ausência de normalização das relações mantém os dois Estados em alerta e preparados para qualquer eventualidade. Sob justificação de que a Eritreia poderia a qualquer momento voltar a ser atacada pela Etiópia,  o Presidente Isaías Afewerk tem mantido o serviço militar obrigatório por tempo indefinido e aqueles cidadãos Eritreus que conseguiram escapar com sucesso afirmam ter servido pelo menos 6 anos até ao momento da fuga.

´No Verão de 2004, quando cheguei a Asmara, a capital da Eritreia, vinda com a Yemenia Airway de Londres e depois de uma paragem que me permitiu deambular pela Cidade Antiga de Saná levava a bagagem cheia de expetativas. Vinha munida de alguns contatos e de muitas advertências relativamente às eventuais consequências das minhas perguntas  para aqueles que se dispusessem a partilhar as suas histórias de vida .  Era a concretização da descoberta do mais récem Estado Independente em África.  A possibilidade de aprender com as experiências e perspetivas  daqueles combatentes que eram descritos como pertencendo a um dos mais disciplinados,  determinados e resilientes movimentos de insurreição em África constituía a minha principal motivação .

Para mim que nasci em Portugal depois do 25 de abril de 1974 esta seria a primeira experiência em que senti na pele o significado de viver num Estado Autoritário. As peripécias multiplicaram-se mas o que mais me marcou foi o poder discricionário dos agentes do Estado perante os cidadãos, os silêncios incómodos dos meus interlocutores pela impossibilidade de partilhar as suas impressões e a presença em vários locais de um qualquer cidadão que falava com quem me acompanhava em Tigrinha e tinha o efeito imediato de causar apreensão em relação à minha presença por parte de quem me ajudava. Nessa altura ainda tive o privilégio de conhecer a Universidade, de falar com docentes, estrangeiros e nacionais e com alunos. A Universidade seria encerrada em 2006 e os vários departamentos foram desmantelados e os docentes distribuídos pelo País.

A situação que se vinha a deteriorar desde o fim da guerra fronteiriça com a Etiópia, nomedamente o aprisionamento em 2001 do grupo de políticos (o G15) que publicou uma carta de protesto relativamente à conduta do Presidente na guerra contra a Etiópia, tem-se tornado cada vez mais difícil de suportar para os 5.5 milhões de Eritreus (incluindo as formações da diáspora). Os relatórios e obras têm-se sucedido nos últimos anos sem qualquer impato sobre a melhoria das condições de vida na Eritreia. Os relatórios da Amnistia Internacional , da Human Rights Watch b, do International Crisis Group  e , mais recentemente o do Conselho para os Direitos Humanos das Nações Unidas resultado da Comissão de Inquérito sobre os Direitos Humanos na Eritreia  , convergem na descrição de condições que constituem violações flagrantes de direitos humanos básicos : as detenções arbitrárias, a tortura , as prisões secretas e/ou em contentores com temperaturas exteriores de 40 ºC , as mortes extra-judiciais, a extensão arbitrária e por tempo indeterminado do serviço militar obrigatório, o recurso aos recrutas para emprego em companhias privadas ou em obras de membros do partido no poder sob o salário simbólico atinente ao cumprimento do serviço militar obrigatório, as rondas denominadas de ‘’gifas’’ para apanhar em falso aqueles em idade de serviço militar obrigatório que não tenham cumprido o mesmo, as multas aplicadas aos familiares dos desertores e, por fim, a não implementação da Constituição, a não realização de eleições, o total controlo do espaço político  quer na Eritreia, quer nos países de acolhimento da diáspora.

Na Eritreia, os opositores do Presidente Isaías Afewerki e do partido no poder são inimigos do Estado e a única saída para aqueles que se opõem a esse projeto polítco ou que simplesmente têm uma visão de futuro que não passe pela consagração da Visão da Nação Sempre em Armas é a fuga para o exterior. Mais recentemente em novembro de 2014 o partido no poder veio anunciar que seria re-introduzido o respeito pelo período de 18 meses para o serviço militar obrigatório. Com base neste anúncio, Estados membros da União Europeia que se encontram entre aqueles que mais refugiados da Eritreia acolhem, em especial o Reino Unido vieram declarar que os Eritreus não deveriam ser considerados requerentes a asilo político à partida face a esta medida. Face à continuidade das condições internas na Eritreia que forçam tantos para a fuga para o exterior esta medida é contrária ao direito ao ”não-refoulement” , ou seja, o direito que assiste a qualquer requerente a asilo político a não ser re-enviado para o seu País de origem enquanto o seu caso estiver a ser processado. Martin Plaut, profundo conhecedor da Eritreia e conhecido jornalista da BBC comenta com ironia que o Reino Unido faz desta forma um favor ao Estado Autoritário na Eritreia.

Aqueles que chegam, em breve, a Portugal deixam para trás um quotidiano captado no testemunho de um ancião entrevistado por Anderberhan Wolde Giorgis no seu recentemente publicado livro:

‘’ No campo vocês eram bons combatentes. Tinhamos muito orgulho e muita esperança em vocês. Ganharam a guerra e trouxeram-nos a independência. Estávamos em jubilo. No entanto,  passada uma dúzia de anos vocês tornaram a nossa vida miserável. Tendo vivido sob a administração Italiana, Britânica, Federal e Etíope, deixa-me dizer-te meu filho: a vossa administração é incompetente, os vossos modos rudes e vergonhosos e a vossa moeda não vale nada. É uma cruel ironia que sob o governos dos nossos filhos estejamos Hoje muito pior.’’

5 pensamentos sobre “Refugiados Eritreus: reféns do mito da Eritreia Mártir após a independência

  1. É curioso ver que o falecido Meles Zenawi e Afewerki eram próximos (Zenawi apoiou desde cedo a independência eritreia – que, a título de curiosidade, celebra a independência no dia do meu aniversário-) e tornaram-se rivais de morte, sobretudo pós independência, pois Zenawi julgava que Afewerki seria um fantoche etíope.
    A disputa de Badmé também não ajudou e só agravou a questão, ainda que a ONU e a Comissão Arbitral tenham dado razão à Eritreia nesta disputa que a Etiópia recusa reconhecer depois de ter aceitado a mediação.
    Actualmente, e já desde há alguns anos, a Eritreia é uma espécie de Coreia do Norte de África, com uma diferença significativa: a discrição de Afewerki que contrasta significativamente com a agressividade para o exterior de Kim Iong-Un. É esta ausência de agenda externa beligerante face ao exterior que faz com que o panorama na Eritreia tenda a ser menosprezado: quanto mais discreto Afewerki é, menos o país dá nas vistas e menos atenção internacional tem. Certo é que Eritreia e Coreia do Norte são os dois países com maior número de soldados por 1.000 habitantes de todo o mundo.
    Relativamente ao asilo por incumprimento do serviço militar obrigatório, não é um exclusivo do Reino Unido, é da União Europeia em geral e decorre das Directivas comunitárias a restrição na atribuição de asilo a quem não queira cumprir o serviço militar obrigatório. É preciso haver algo mais e as Directivas referem os motivos associados à legitimidade da deserção.

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    • Caro Alexandre. Obrigada pelos comentários e que permitem explorar outras questões na conturbada relação entre a Eritreia e a Etiópia e a Eritreia na região.

      O Presidente Isaias Afewerki e o falecido Primeiro Ministro Meles Zenawi (no Verão de 2012) foram companheiros de armas mas as lutas já datavam da década de 80 durante a luta pela independência na Eritreia e a guerra civil na Etiópia para derrubar o regime autoritário do DERG. Prof Merid Wolde Aregai defendia que só poderiamos assistir à normalização das relações entre os dois Estados com o desaparecimento dos dois líderes em questão. Até ao presente os incidentes ao longo da fronteira apesar de menores têm sido recorrentes e as relações entre Asmara e Addis Abeba continuam de desconfiança mútua. O fato da Etiópia também não ter aceite a decisão da Comissão Fronteiriça para a Eritreia e a Etiópia também não ajudou, pese embora os problemas em torno da Decisão final da referida comissão em várias localidades ao longo da fronteirae em particular relativamente ao reconhecimento de que Badme se encontrava sob jurisdição da Eritreia.

      Quanto à Eritreia na região encontra-se isolada mas na sequência de uma série de interferências controversas ( no Sudão, na Somália mediante o apoio a antigos membros do Conselho dos Tribunais Islâmicos e alegadamente a al-shabaab) e de envolvimento em disputas fronteiriças com praticamente com todos os seus vizinhos contíguos ( Yemen pela jurisdição das Ilhas Hanish, Djibouti em 2008).

      Quanto à deserção não seria adequado considerá-lo dessa forma na medida em que desde a iniciativa warsay-yikealo ( warsay refere-se a todos aqueles recrutados depois da independência e yikealo refere-se aos antigos combatentes) todos aqueles em idade de serviço militar obrigatório ficam obrigados a trabalharem voluntariamente em atividades para o desenvolvimento do Estado.Não se trata de deserção quando aqueles a cumprirem serviço militar obrigatório se vêm obrigado a manterem a sua vida hipotecada ad eternum e não apenas por 18 meses e são alvo de tortura, violência sexual, trabalho forçado, etc. Logo neste contexto não podemos falar de deserção . Em comparação com a Siria, a Eritreia surge em 2 lugar como o País que deu origem a maior número de refugiados em 2014.
      Fica a referência do livro de Richard Reid sobre a Política Externa da Eritreia:
      http://www.chathamhouse.org/publications/books/archive/view/63394

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  2. Leonard Vincent, Sonia Le Gouriellec e Frank Gouéry debateram a(s) Razões por detrás da Fuga dos jovens Eritreus do seu País. Passou a 11 de junho no canal Arte.TV/28 minutes. A partir do minuto 13:37:

    Nos blogues dos autores convidados:
    Good Morning Afrika (Sonia Le Gouriellec) : http://goodmorningafrika.blogspot.pt/2015/06/erythreens-pourquoi-fuient-ils-leur.html

    Les Erythreens (Leonard Vincent): https://erythreens.wordpress.com/2015/06/

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